Assim que meu filho tiver mais idade, quero muito ensiná-lo a fazer pão. Se não pão, pelo menos a cozinhar e a preparar aquilo que ele mais gosta de comer.
Gosto de pensar que aprender a fazer pão em casa — e, depois disso, a preparar muitas outras coisas na cozinha — me ensinou muito mais sobre a vida do que eu poderia antecipar. Foi assando baguettes, ciabattas e focaccias que cheguei à conclusão de que você pode simplesmente "ir lá e fazer". Como dizemos em inglês, you can just do stuff.
Comer algo delicioso preparado pelas minhas próprias mãos era uma experiência nova. Eu finalmente havia compreendido que o que me separava daqueles que trabalhavam e viviam de maneira excelente era uma distância longa, porém trilhável, possível.
Algumas pessoas parecem já nascer com esta noção de agência, a ponto de sequer pensarem a respeito dela. Embora tenha sido uma criança bastante curiosa, o tempo e as provações da vida me provaram que este não era o meu caso.
Muito se fala sobre a criança que achava que o leite vinha da caixinha do supermercado, mas é muito fácil você crescer e passar a acreditar em pequenas mentiras sobre a maneira como o mundo funciona. É fácil subestimarmos a complexidade do mundo em que vivemos. E quando fazemos isso, subestimamos também o papel que a ação humana desempenha nele.
Minha esposa, Gabriela, chegou a cursar alguns semestres de engenharia de telecomunicações antes de trancar o curso e ir estudar jornalismo. Quando ela fala a respeito disso com outras pessoas, é muito comum que elas reajam perguntando o que faz, afinal, um engenheiro de telecomunicações.
Como de costume, ela gosta de apontar para o fato de que tudo ao nosso redor depende de comunicações intermediadas por cabos, redes, sinais, antenas e frequências de rádio. Estamos tão acostumados a usar fones de ouvido sem fio que esquecemos de que ainda precisamos de cabos de internet correndo pelo oceano.
E o mesmo vale para diversas outras áreas de nossa vida. Em seu livro sobre como tecidos moldaram nossa civilização, Virginia Postrel, nos deixa claro desde o início que não existem tecidos naturais, ao menos não como os imaginamos. Até aquilo que consideramos ser o mais natural, é fruto de um processo longo e sofisticado de seleção:
Fios, corantes, tecidos, até mesmo as plantas e animais que fornecem a matéria-prima, são todos produtos de milênios de refinamentos e inovações, grandes e pequenas. A ação humana, não apenas a natureza, fez do algodão o que ele é hoje.
O algodão, a lã, o linho, a seda e seus parentes menos proeminentes podem ter origens biológicas, mas essas chamadas fibras naturais são produtos de um trabalho tão antigo e familiar que esquecemos que ele existe.1
Podemos ainda aplicar este princípio a quase tudo o que temos ao nosso redor. conforme escreveu John Collison no Twitter,
À medida que você cresce, você percebe que as coisas ao seu redor nem sempre existiram como as vemos; as pessoas fizeram com que elas acontecessem. Mas só recentemente comecei a internalizar quanta tenacidade é necessária para construir qualquer coisa. Desde aquele hotel, aquele parque, até aquela ferrovia. O nosso mundo é um museu de projetos de estimação.
Esta notícia nos leva a duas conclusões: primeiro, a de que o mundo em que vivemos é mais complexo do que antes imaginávamos; e segundo, de que esta complexidade é feita de coisas que são possíveis de ser feitas.
E é desta internalização, racional ou não, que surge em nós a noção de agência.
Do pão que você compra na padaria à rede social em que você passa seu tempo livre, tudo isso é fruto do trabalho de pessoas que optaram por agir na realidade — e que muito provavelmente estão sobre os ombros de gigantes, usufruindo do trabalho e expandindo as realizações das muitas gerações que vieram anteriormente.
Esta revelação chegou a mim quando decidi fazer meu primeiro (e desastroso) pão. Para outras pessoas, esta conclusão pode chegar mais cedo e de outras formas, como formando uma banda de rock na adolescência ou aprendendo a resolver problemas com algumas linhas de código. Estas são coisas simples, em que você não precisa da autorização de quase mais ninguém para agir, crescer e aprender.
Pode ser também que algumas pessoas jamais precisem aprender estas lições de maneira consciente, e enquanto pai é meu desejo que assim seja com meu filho. Meu esforço diário é para que em nenhum momento ele viva tão desconectado do mundo real a ponto de esquecer de seu papel enquanto agente na realidade.
É impossível não nos alienarmos parcialmente da complexidade do mundo ao nosso redor. Se ficarmos a vida toda pensando nos detalhes e no trabalho que nos trouxe tudo o que temos à nossa volta, ficaríamos paralisados.
Mas, mais importante que isso, precisamos abrir nossos olhos todos os dias para aquilo que podemos compreender e nos maravilharmos com isso tudo.
Ao ensinar meu filho a fazer pão em casa, eu espero que ele ganhe algo muito maior do que baguettes fresquinhas no café da manhã. Eu espero que ele compreenda que as coisas não simplesmente acontecem, mas também que ele é capaz de ir lá e tentar e fazer (quase) tudo o que ele quiser. Quer ele compreenda isso racionalmente ou não, espero que ele aprenda isso antes de mim.
Este breve ensaio estava “no forno” há muito tempo mas, como com quase tudo o que faço, ele saiu rapidinho assim que sentei para escrever. Um feliz final de inverno a todos,
Pedro.
Virginia Postrel - The Fabric of Civilization: How Textiles Made the World (2020)
Pedro, prazerbem.conhece-lo, bem vindo a minha rede.
Eu faço paes, receita de minha vó, fazer pão é algo especial, num dia especial.
Dia de pão, agora na casa desta avó (Euzinha) é alegria, o dois netos de 13 e 14 vêm pra cá, pegam seus aventais e tocas, farinhas, travessas...brincam riem se abraçam. ME ABRAÇAM!
CRIAM MEMORIAS AFETIVAS.
É o que quero deixar para meus netos - memórias afetivas
Fazer pão é uma delas.
Grata pelo belíssimo texto.
Excelente texto, xará!