Em 1987, o poeta e fazendeiro Wendell Berry publicou seu famoso ensaio Por que não comprarei um computador. Na época, o texto causou tanta comoção que a revista Harper decidiu publicar as cartas escritas por leitores indignados em sua edição seguinte.1 Além do estilo abrasivo do autor, muitas pessoas criticaram o fato de que, enquanto este escrevia seus romances e poemas usando caneta e papel, sua esposa era responsável por revisar e datilografar seus textos usando uma máquina de escrever.
As principais críticas acusavam o escritor de ser um hipócrita, de que era sua esposa quem sofria as consequências de seu estilo de vida analógico.
Berry escolheu responder às cartas apontando para uma dinâmica familiar que seus críticos ignoravam: sua esposa era sua parceira em tudo aquilo que ele escrevia. Ela não apenas transcrevia e revisava seus textos diante da máquina de escrever, como também gostava de fazer isso — aquele era um dos muitos lugares em que seu relacionamento se tornava mais forte.
No caso de Wendell Berry, comprar um computador e alterar a “linha de produção literária” criada por sua família não custaria apenas dinheiro. mas também uma parte significativa de seu relacionamento com, e aqui o cito diretamente, minha esposa, minha crítica, minha leitora mais próxima, minha companheira de trabalho.2 Diante de um preço tão alto, Berry manteve (e ainda mantém) os mesmos hábitos de escrita.
No fim do texto original, Berry enumera algumas regras para a aquisição de novas tecnologias. Estas regras são estritas e um pouco excêntricas, indo desde o valor de novos bens (que devem ser mais baratos que suas gerações anteriores) até o lugar onde eles deve ser comprados (quanto mais perto de casa, melhor). É fascinante ler as palavras de uma pessoa que realmente acredita naquilo que está escrevendo. Diante disso, aqui em casa, optamos por ignorar todas as oito primeiras regras e a nos apegarmos firmemente à nona e última condição dada por Berry:
A nova tecnologia não deve substituir ou perturbar nada de bom que já existe, e isso inclui relações de família e de comunidade.
Por aqui, esta regra nos guia em qualquer grande aquisição que temos de fazer enquanto família e indivíduos, desde um móvel até serviços de assinatura. É o maior princípio de design de nossa casa.
Em sua tese de doutorado, Notes on the Synthesis of Form, o arquiteto e matemático Christopher Alexander descreve três elementos que precisam ser considerados em qualquer processo de design: forma, contexto, e encaixe. A forma é a solução para o problema; o contexto define qual é o problema.3
Segundo Alexander, o bom designer não deve pensar apenas na forma que está sendo criada, mas também no contexto onde ela será inserida. O objetivo final de toda forma não é parecer boa em si mesma, mas se encaixar no contexto e assim transformá-lo.
Ao adicionarmos um elemento em um contexto, não estamos apenas adicionando um novo item a um ambiente; estamos adicionando um novo nó na densa malha da realidade, criando novos relacionamentos e possíveis complicações.
Para solucionar problemas de design, Alexander não propõe um método engessado, uma checklist que resolvam todos os problemas do mundo. Seu método consiste justamente em observar o contexto, tentando compreender aquilo que ele está tentando nos dizer.4
Pessoas que tem algum interesse por moda e que desejam desenvolver um estilo próprio já falam disso há muito tempo. Quando saem para comprar roupas, elas sabem que uma peça no cabide não serve de nada sem o restante do guarda-roupa que as espera em casa. Uma nova peça de roupa, comprada com esta ideia em mente, entrará em diálogo com diversas outras roupas que compõe o estilo pessoal de alguém, adicionando novos elementos a esta identidade. Uma peça comprada de maneira isolada, sem levar em consideração o contexto onde será inserida, muitas vezes ficará para sempre no fundo da gaveta.
Gabriela e eu nunca havíamos atentado para o fato de que não tínhamos uma televisão, até que uma visita apontou para isso, comentando que era a primeira vez em que estava em uma casa sem TV.
Não há orgulho ou falsidade alguma quando afirmamos isso. Não termos uma televisão não nos impede de passarmos mais tempo do que deveríamos no computador e no celular.
O que isso significa, porém, é o que o contexto de nossa casa foi suficiente para que, inconscientemente, não adicionássemos um televisor à nossa lista de futuras aquisições. Uma nova forma, neste caso uma televisão, nunca vem sozinha. Ela sempre altera o contexto onde ela se encontra.
Um exemplo de como a televisão se encaixaria mal em nossa sala de estar é a maneira como ela mudaria nosso relacionamento com o sofá.
Diferente dos sofás contemporâneos, projetados para que as pessoas fiquem reclinadas diante de um televisor, nosso sofá tem 95 anos de idade. Ele é perfeito para que duas pessoas possam se reclinar e ler um livro, mexer no celular, ou conversar, mas nada além disso.
É neste sofá em que tomamos nossas decisões enquanto família, lemos, oramos, e tiramos eventuais cochilos (um de cada vez). Ele seria terrivelmente desconfortável se nos colocássemos lado a lado para assistirmos alguma coisa juntos, mas sua estrutura é perfeita para que nos vejamos frente a frente, para conversarmos.
Além da maneira como nos relacionamos com um móvel de nossa casa, uma televisão também nos tentaria a mudarmos as estruturas invisíveis do nosso lar, como o hábito de comermos juntos à mesa, ou a garantia de que a sala será um lugar livre de distrações visuais e sonoras, tanto para nós quanto para nosso filho. Ler, brincar, tocar violão e conversar são, para nós, atividades mais importantes do que assistir a algo juntos. É como decidimos passar nosso tempo em família.
Esta é a nossa casa e a nossa família, e estes são princípios que são caros a nós. Isso não significa que nossas decisões deveriam ser adotadas por todo mundo e nem que televisões sejam necessariamente ruins ou más. Pelo contrário, assistir a um filme na tela do computador, que é o que fazemos atualmente, definitivamente não é o ideal.5
Se há algo universal a ser recomendado aqui, é o hábito da obervação. Como disse Henrik Karlsson, falando justamente sobre Christopher Alexander, o contexto é mais inteligente do que você. Ele contém mais nuances e informações do que você é capaz de conter em sua cabeça.6
Novidades nunca vem sozinhas. Com o tempo, elas moldam nossos hábitos, princípios, e linguagem, trazendo consigo novas soluções e problemas.7 Quando prezamos minimamente pelas coisas boas que já existem na vida, o mínimo que podemos fazer é parar e ouvir o que ela própria nos tem a dizer.
Edições mais recentes do texto incluem o ensaio original, as cartas dos leitores, e a resposta final do autor. Disponível aqui.
Do original, “[…] but my wife, my critic, my closest reader, my fellow worker”.
Do original, “The form is the solution to the problem; the context defines the problem.” em Notes on the Synthesis of Form, p. 15.
No caso de Notes on the Synthesis of Form, Alexander defende a ideia de uma representação gráfica que facilite a compreensão deste tipo de complexidade. Para os fins deste ensaio, esta representação não é necessária.
A solução que melhor se encaixa em nosso contexto provavelmente será comprarmos um projetor. Sua maior vantagem é poder ser guardado em uma caixa após o uso.
Excelente! Opinião muito parecida com a minha sobre ter televisão no quarto. Quanto ao sofá: parece bonito e confortabílissimo.